As Fanfics violam os Direitos Autorais?

Será que as fanfics violam os Direitos Autorais? Se você já passou pela experiência de ler um livro muito emocionante ou assistir a um filme espetacular, provavelmente, já se sentiu frustrado por não ter uma continuação para eles. Às vezes, pode até ter uma continuação, mas ela não é assim tão boa, e você sente que poderia ser melhor.

Provavelmente, os leitores e cinéfilos de plantão se identificaram com a situação. O que muitas dessas pessoas acabam fazendo é escrever elas mesmas a continuação que desejaram ver. Muitos, inclusive, compartilham esses textos em comunidades online, para que outros fãs possam ler. Mas é aí que surge a dúvida: será que estou violando os Direitos Autorais do autor original?

No artigo “Fanfictions enquanto obras derivadas no Direito português”, Laura Filgueiras Tavares, Mestranda em Direitos Intelectuais na Universidade de Lisboa, fala mais sobre este tema.

Este artigo foi publicado nos Anais do XV CODAIP, um evento promovido todos os anos pelo GEDAI. Em 2021, o CODAIP contou com quase 3.000 participantes e mais de 150 palestras.

Os melhores artigos escritos pelos pesquisadores participantes do Congresso foram compilados e publicados nos Anais do XV CODAIP.

O que são as fanfics?

Popularmente conhecidas como fanfics, as fanfictions são produções feitas por fãs e destinadas a outros fãs, com base em uma obra anterior. Por causa disso, as fanfics se tornaram um fenômeno mundial e fazem parte da cultura de compartilhamento da internet.

Assim, por meio das fanfics, os fãs saíram da posição de consumidores passivos e passaram a ser autores de histórias próprias. No entanto, a questão das fanfictions cria uma certa tensão no campo do Direito do Autor.

Justamente por terem como base uma obra criada por outra pessoa, de acordo com as leis que protegem o Direito Autoral, seria necessário que o autor original autorizasse a utilização da sua criação. Só que, na maioria das vezes, não é isso o que acontece.

Mesmo que a finalidade das fanfics seja o compartilhamento, a utilização delas com fins comerciais é o que mais assusta os titulares dos Direitos de Propriedade Intelectual. Um dos principais motivos para isso é que as grandes editoras e produtoras de cinema estão sempre de olho nas fanfictions, esperando o próximo sucesso.

Nesse sentido, apesar da grande importância que as fanfics têm ao redor do mundo, não há legislação que regule de forma consistente essa situação. No entanto, podemos tentar enquadrar as fanfictions em classificações já existentes.

No canal do YouTube do IODA você encontra um vídeo que fala mais sobre a questão das fanfictions e a violação dos Direitos Autorais.

Fanfics e obras transformadoras

Um dos direitos assegurados ao autor da obra é a possibilidade de transformar a sua criação. Sendo assim, este direito está ligado aos direitos patrimoniais do autor. Quando pensamos nas fanfictions, pode ser difícil classificar o novo texto como uma obra derivada, já que é necessário medir a força da relação entre a fanfic e a obra original.

No Direito português, dentro do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos, existe o conceito de obra derivada. Então, quando se traduz uma obra, quando a transforma em peça de teatro ou a transpõe para o cinema, essa transformação da obra original é considerada uma obra derivada.

No entanto, já que o Código não especifica exatamente o que é o “ato transformador” da obra original, a interpretação da lei pode não ficar tão clara. Assim, como se trata de uma forma de ação intelectual criativa, a transformação de uma obra traz consigo dois direitos.

O primeiro deles é a proteção dos direitos do autor da obra originária, enquanto que o segundo é a proteção do autor da outra obra. Evidentemente, o autor da adaptação terá direitos limitados, já que dependerá da autorização do autor original para fazer valer os seus direitos.

A questão da originalidade

Ioda Instituto Observatório de Diteto - Imagem meramente ilustrativa

Geralmente, as obras produzidas por fãs são uma forma de homenagem à obra original. No entanto, essa relação depende da maneira com que a obra inicial é referenciada. Dessa forma, não seria correto juntar todos os tipos de fanfictions em apenas uma forma de expressão.

Assim, surge uma complexa questão: qual o grau de originalidade ou originalidade relativa de uma uma fanfic? Ainda dentro da legislação portuguesa, existem duas classificações que podem ser tomadas:

  • Originalidade objetiva, que é aceita em países usuários do sistema de copyright. O foco está sobre o trabalho do autor, ou seja, a nova obra não pode ser uma cópia da original, ela deve ter alguma novidade que a diferencie;
  • Originalidade subjetiva (ou criatividade), que é mais aceita pelos países que possuem leis de Direito do Autor. Essa classificação entende que a originalidade é parte da personalidade do autor. Assim, cada obra teria em si a marca pessoal do seu criador. 

No entanto, essas duas classificações não são suficientes, já que qualquer obra, seja ela derivada ou original, deve possuir um certo grau de novidade, assim como os traços da personalidade do criador. Sendo assim, a transformação da obra pode acontecer de forma tanto externa quanto interna.

A transformação externa acontece quando muda o suporte da obra, por exemplo, da literatura para o cinema. A forma de consumo da obra pode ter mudado, mas sua história, personagens e demais características são parecidas com as da obra original.

Já a transformação interna acontece quando algumas características da obra inicial mudam, mas ainda é possível reconhecê-la na nova obra. Um bom exemplo são adaptações de histórias para o público infantil, onde personagens podem ser cortados e situações modificadas, mas a história de base permanece a mesma.

A conexão com a obra original

Nesse sentido, as fanfics são transformações tanto externas quanto internas da obra original. Por isso, a fanfic se configura como uma obra derivada. Uma obra é derivada quando tem um relacionamento próximo com a obra que foi transformada. Dessa forma, a obra original deve ser facilmente reconhecida dentro da nova obra.

Assim, uma obra transformadora acrescenta um novo olhar sobre a obra original. O processo de transformação da obra deixa as obras original e derivada em pé de igualdade, já que a nova criação é também original. Portanto, como medir a conexão entre a fanfic e a obra inicial?

Quando pensamos em uma fanfiction com poucas alterações, é mais fácil identificar a obra inicial. No entanto, quando há a criação de uma nova história a partir de uma cena da obra original, por exemplo, é muito mais difícil enquadrar a obra como derivada.

Na maioria das produções feitas por fãs, a única ligação com a obra original são os personagens. No entanto, é importante ter em mente que a intertextualidade é comum nas várias atividades criativas. Da mesma forma, a inspiração é livre e pode acontecer por meio de elementos que não recebem proteção dos Direitos Autorais, como o tema.

Será que os fanwritters têm direitos?

Como comentamos, dentro dos direitos patrimoniais está previsto o direito de transformação, assim como os direitos de comunicação ao público e de distribuição da obra. Enquanto o direito de transformação permite ao titular traduzir e adaptar a sua obra, o direito de comunicação concede a possibilidade de transmitir a obra.

O direito de comunicação está previsto também no tratado da OMPI, onde inclui o rádio, a TV e a internet como meios válidos de transmissão. Já o direito de distribuição permite que o titular disponibilize cópias da sua obra.

Quando pensamos em fanfictions enquanto obras derivadas, os fãs escritores são reconhecidamente autores de suas obras. Portanto, os fanwritters são titulares dos direitos citados anteriormente. No entanto, como  a obra é derivada, estes direitos são limitados e, assim, a exploração econômica das criações dependerá da autorização do autor original.

No entanto, essa dependência de autorização não desqualifica a fanfic como obra. Dessa forma, o Código de Direito de Autor e Direitos Conexos fixou zonas livres de utilização, ou seja, em algumas situações, o Código permite o uso de obras sem a autorização do autor.

Direitos fundamentais

Ioda Instituto Observatório de Diteto - Imagem meramente ilustrativa

Na legislação portuguesa, há uma discussão que defende que obras derivadas deveriam ser distribuídas ao público, recebendo ou não a autorização do autor. Essa ideia vem da defesa da liberdade de expressão e do interesse público.

A produção dos fãs seria uma forma de proporcionar liberdade de criação aos escritores e de democratizar o acesso à informação e à cultura. O ponto principal dessa discussão é a questão entre os direitos patrimoniais e os direitos fundamentais. Dessa forma, os direitos fundamentais seriam uma forma de limitação externa aos Direitos Autorais.

O grande problema é que a transformação criativa ainda é mal vista. Ainda há a ideia de que qualquer uso da obra feito por terceiros pode prejudicar o autor. No entanto, o Direito Autoral não pode servir de barreira para futuros autores. Afinal, de uma forma ou de outra, todos os artistas se inspiram em trabalhos anteriores.

Pensando nisso, é interessante notar iniciativas como o Creative Commons, que têm crescido bastante ultimamente. Este sucesso se dá porque as exceções legais aos Direitos não têm sido suficientes para estimular a criação de novas obras e balancear os interesses do autor e da sociedade informacional em que vivemos.

Quer saber mais sobre o assunto? Leia o nosso texto sobre a Regra dos Três Passos e as limitações ao Direito Autoral.

O uso livre

Na legislação norte-americana, para saber se é possível usar legalmente uma obra protegida através do uso livre, devemos observar alguns critérios:

  • é preciso avaliar o objetivo do uso da obra, ou seja, se é para fins comerciais, educativos, entre outros; 
  • deve-se entender a natureza da obra original;
  • é necessário medir o quanto da obra inicial está presente na nova obra;
  • e, por último, é importante que se deixe claro quais os efeitos que a nova obra pode causar na obra original.

Assim, o uso livre pode ser visto como uma forma de driblar a condenação por violação dos Direitos Autorais. Dependendo do caso, os Tribunais decidem se aconteceu uma violação ou não. A partir disso, em caso de violação, decidem se podem tratar o ocorrido como uma exceção de uso livre. Nesse sentido, podemos aplicar o uso livre em obras derivadas.

No entanto, quando pensamos no uso livre, percebemos que o sistema estadunidense é muito voltado para a área econômica. O foco sempre recai sobre os interesses financeiros do titular. Nesse sentido, é comum utilizar a Regra dos Três Passos para analisar os casos de uso livre. 

Voltando às fanfics, geralmente, as produções de fãs não têm o lucro como objetivo. Dessa forma, o compartilhamento dos textos na internet quase nunca prejudica o autor da obra original. Isto porque a maioria das fanfics não pode competir no mesmo espaço que as obras originais, já que muitas vezes exploram temas não abordados pelos autores originais, como morte e erotização de personagens.

A questão das paródias

As fanfics transitam no ambiente digital, onde as paródias se revelaram um elemento muito importante para a comunicação, principalmente por meio dos “memes” da internet. Do ponto de vista do Direito Autoral, essa é uma questão delicada, já que a questão do humor não é bem contemplada pela legislação.

Nesse sentido, para se classificar as paródias como tal, é preciso que se reconheça as características do gênero. Por exemplo, uma paródia deve ser crítica, irônica e ter um ar brincalhão. No entanto, as paródias sempre fazem referência a uma obra anterior. Portanto, podemos considerar a paródia como uma obra derivada.

Dessa forma, se uma fanfic for também uma paródia, não será necessário receber autorização do autor quando se referir à obra original. No entanto, é uma tarefa difícil encaixar as fanfics na categoria das paródias. Assim, é melhor que se faça uma análise caso a caso, para se atingir um resultado melhor.

Saiba mais sobre essa questão no nosso vídeo no canal do YouTube do IODA, que discute as paródias no contexto de campanhas eleitorais.

As Fanfics violam os Direitos Autorais?

Embora as fanfictions sejam uma prática comum para os fãs de plantão desde antes da popularização da internet, o meio digital contribuiu muito para o fenômeno dessas produções.

Por ser muito complicado padronizar as fanfics em uma só lei, é importante analisar cada caso separadamente. Além disso, é essencial avaliar o grau de conexão existente entre a fanfic e a obra original.

Considerando a fanfic como uma obra derivada, haverá certos limites sobre os direitos patrimoniais, já que é necessária a autorização do autor original. No entanto, o fanwritter tem direitos sobre a sua obra, assim como o reconhecimento legal da sua autoria.

Nesse sentido, o Direito Autoral não pode atuar como um obstáculo para a liberdade de expressão ou o acesso à cultura. As fanfics tornam democrático o acesso aos materiais protegidos e, inclusive, ajudam na difusão da obra original.

 

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O artigo "Fanfictions enquanto obras derivadas no Direito português", de Laura Filgueiras Tavares, examina a legalidade das fanfics sob a perspectiva dos Direitos Autorais. Aborda a prática de fãs criarem continuations de obras originais, discutindo se essas produções violam os direitos dos autores originais. O estudo destaca a ausência de legislação específica que regule as fanfics, analisando-as como possíveis obras derivadas conforme o Código de Direito de Autor e Direitos Conexos de Portugal.

Marcos Wachowicz Autor
Publicado em 24/06/2022
Atualizado em 09/12/2024
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