Direito de Sucessão e Herdeiros
O Direito de Sucessão serve para proteger legalmente os herdeiros. Na maioria das vezes, o Direito de Sucessão está relacionado à guarda dos bens do falecido. No entanto, mesmo após a morte, os direitos de personalidade ainda permanecem e podem ser herdados pelos sucessores.
Além disso, com a internet, surge uma nova forma de bens digitais, tanto com valor econômico, quanto com valor sentimental. Nesse sentido, um grande problema nasce quando os herdeiros não sabem administrar o patrimônio recebido. Ou ainda, quando a criação autoral do falecido é explorada de forma abusiva pelos herdeiros.
Esse tema foi tratado nos artigos:
- “Os Direitos Patrimoniais e Extrapatrimoniais Post Mortem: uma breve análise da sucessão no ambiente digital”, escrito por Bibiana Biscaia Virtuoso e Heloisa Augusta Vieira Molitor.
- “O Exclusivo dos Herdeiros Frente ao Interesse Público: a transmissão post mortem de direitos autorais como vetor de proliferação de abusos”, de autoria de Thalia Ferreira Cirilo e Matheus Víctor Sousa Soares.
Estes artigos foram publicados nos Anais do XV CODAIP, um evento promovido todos os anos pelo GEDAI. Em 2021, o CODAIP contou com quase 3.000 participantes e mais de 150 palestras.
Os melhores artigos escritos pelos pesquisadores participantes do Congresso foram compilados e publicados nos Anais do XV CODAIP.
Direito de Sucessão e os bens digitais
A maioria de nós usa a internet quase todos os dias. Nesse processo, produzimos uma enorme quantidade de dados e consumimos muitas informações. Várias atividades cotidianas migraram para o ambiente digital, por exemplo, os bancos virtuais ou os shows online na época da pandemia de COVID-19.
Sendo assim, podemos afirmar que a internet não mudou apenas as relações de consumo, mas também mudou a forma como nos relacionamos. Nesse sentido, na área do Direito, algumas questões como a privacidade online e a liberdade de expressão se mostram desafiadoras.
No entanto, não apenas os usuários vivos da internet merecem a proteção da Lei. Também devem ser respeitados os direitos daqueles que já faleceram e que deixaram para trás contas em redes sociais, jogos virtuais, bancos, e até mesmo produções intelectuais online.
Assim, entramos na questão do Direito de Sucessão e o direito dos herdeiros de acessarem os dados online dos falecidos.
Direitos patrimoniais e extrapatrimoniais
Quando pensamos em Direito de Sucessão, é comum imaginarmos apenas a questão patrimonial. Isso se dá porque apenas os direitos que têm natureza econômica podem ser transferidos quando seus titulares morrem. Enquanto isso, a maioria dos direitos de personalidade morrem junto com o titular.
No entanto, o Direito protege tanto os direitos patrimoniais quanto os chamados extrapatrimoniais, ou seja, fora do campo econômico. Dentre os direitos de personalidade, podemos citar: direito à vida, à liberdade, ao próprio corpo, à proteção da intimidade, à preservação da própria imagem, às obras de criação do indivíduo, entre outros.
Bens digitais e os herdeiros
É impossível pensar em um indivíduo que não esteja conectado à internet. Como comentamos, cada ação virtual feita pelo usuário gera dados e informações que muitas vezes se tornam conteúdos. Mesmo que seja algo bem amador, o conteúdo produzido pelos usuários pode gerar renda.
Os vídeos monetizados do YouTube são um exemplo clássico. Porém, plataformas como o Tik Tok se tornaram extremamente populares, que pagam seus usuários pelo conteúdo que criam. Obviamente, o objetivo é o maior engajamento dos usuários e o lucro decorrente disto, já que o Tik Tok não usa anúncios como fonte de renda.
Outro exemplo interessante são os NFTs (Non-Fungible Tokens), uma tecnologia baseada em blockchain. Por serem associados às criptomoedas, os NFTs também representam uma fonte de lucro no ambiente online. Nesse sentido, por terem valor econômico, esses bens digitais podem ser transmitidos para os herdeiros através da sucessão.
Assim, podemos pensar no conceito de herança digital. No entanto, essa herança se dá apenas nos bens de natureza patrimonial, já que os conteúdos online de natureza sentimental como fotos, senhas, mensagens e outros, não serão transmitidos aos herdeiros.
Bens digitais na Lei brasileira
A discussão sobre a transmissão do acesso às redes sociais do falecido para os herdeiros ainda não tem um consenso. Quando são, por exemplo, contas em bancos ou carteiras de criptomoedas, a conta e a senha podem ser passadas para o herdeiro tranquilamente. Mas no caso de perfis de redes sociais e aplicativos de chat, o acesso dos familiares costuma ser barrado.
No Direito brasileiro, faltam leis específicas que regulem a questão da herança digital. Entretanto, alguns projetos de lei recentes têm encarado o tema de frente, como os dois Projetos de Lei (PL) que tramitaram no Congresso em 2019. O PL 4.847/ 2012 tentou justamente regrar essa situação no país, entendendo como herança digital tudo o que é possível acumular no meio digital – sejam contas, bens ou serviços, senhas.
Já o PL 4.099/ 2012 pretendia ceder aos herdeiros todos os conteúdos digitais. No entanto, isso aconteceria apenas se o falecido não tivesse deixado especificado em seu testamento. Assim, o herdeiro seria livre para decidir sobre o destino das contas do falecido. Entretanto, os dois projetos foram arquivados.
Outro Projeto de Lei sobre o tema foi o PL 7.742/ 2017, que propôs a inclusão de um artigo no Marco Civil da Internet. Esse artigo exigiria a exclusão das contas de usuários falecidos, desde que a morte fosse comprovada. O PL ainda aguarda aprovação na Câmara dos Deputados.
Relação com os Direitos Autorais
Já que há a falta de uma legislação específica sobre o tema, o Direito deve analisar a questão do Direito de Sucessão e os bens digitais e buscar alternativas. Nesse sentido, é interessante notar uma certa semelhança com os Direitos Autorais.
Na LDA (Lei de Direito Autoral) há a proteção dos direitos patrimoniais do autor, que se refere à exploração comercial da obra. Esses direitos podem ser passados para outras pessoas, estando o titular vivo ou por meio da sucessão. Os Direitos Autorais também zelam pelos direitos morais do autor. Estes direitos protegem a personalidade do autor e não podem ser transmitidos para ninguém.
Nesse sentido, conseguimos observar a aproximação entre os direitos patrimoniais e extrapatrimoniais defendidos pelo Direito de Sucessão. Geralmente, na sucessão muitas vezes se lida com bens patrimoniais. No entanto, como já comentamos, a sucessão de bens digitais pode também bater nos limites pessoais do falecido.
Portanto, é importante se pensar na aplicação de limites aos herdeiros. Os direitos do falecido devem ser respeitados, uma vez que muitas pessoas nem sabem que os dados produzidos por elas no ambiente virtual podem se tornar ativos econômicos. Como não sabem do potencial dos seus dados, os usuários não costumam tomar cuidado com as suas atividades online.
Os herdeiros dos bens digitais
Uma das formas de se especificar como os bens digitais serão tratados após a morte é por meio de um testamento. No entanto, a questão do cuidado online é muito importante quando pensamos nessa alternativa.
Como muitos não cuidam das suas atividades online, a preocupação de deixá-las em testamento é mínima. Além disso, a prática do testamento no Brasil não é muito usual. A maioria da população não sabe exatamente como funciona o testamento e, somado a isso, o planejamento sucessório é caro.
Nesse sentido, dentro dos termos de uso de algumas plataformas online – como o Facebook – existe a possibilidade de se escolher o destino da conta após a morte do usuário.
A questão dos herdeiros vai muito além de apenas controlar as atividades online do falecido. Da mesma forma, a relação com os Direitos Autorais vai muito além da simples semelhança. Quando o falecido é também um autor, os direitos que os herdeiros recebem por meio da sucessão devem ser dosados, para que os interesses da sociedade não se percam pelo caminho.
A sucessão dos Direitos Autorais
A Convenção de Berna de 1886 é a base para a Lei de Direitos Autorais (LDA) atualmente vigente no Brasil. O foco principal da LDA é a proteção do autor e de sua obra contra violações. Nesse sentido, o Direito Autoral nasceu sob uma ótica capitalista, que uniu a criação intelectual e a propriedade privada.
Assim, os interesses da sociedade foram postos de lado. Em consequência, a criatividade perde o estímulo, e o repúdio a comportamentos como o plágio aumenta. Portanto, caso não haja limites sobre essa proteção, os interesses da sociedade e processo criativo de outros autores podem ficar em xeque.
A possibilidade de entrada da obra em Domínio Público representou um grande passo rumo ao reconhecimento do interesse social. Além disso, a limitação do tempo em que os direitos do autor continuam válidos após a sua morte limitou a natureza absoluta da propriedade privada.
Nesse sentido, o Direito Autoral na questão do Direito de Sucessão e herdeiros pode configurar um problema. A Sucessão Autoral pode estender os prazos da proteção de forma indeterminada. Assim, essa questão acaba se tornando um abuso da exclusividade autoral.
Sucessão e os abusos dos Herdeiros
A exclusividade conferida pelo Direito Autoral é uma via de mão dupla: ela pode ao mesmo tempo incentivar e barrar totalmente a produção de novas obras.
Assim, o incentivo viria de saber que o tempo e os recursos gastos pelo criador na obra seriam repostos, com a possibilidade de lucro. No entanto, quando impede a concorrência e limita a utilização da obra, a exclusividade se torna um abuso.
Há na legislação brasileira certos limites e exceções ao Direito Autoral. No entanto, essas ferramentas não são suficientes. Nesse sentido, existem três formas praticadas de abuso:
- abuso em relações contratuais;
- abuso na responsabilidade civil;
- abuso através das medidas tecnológicas de proteção.
Pensando na questão do Direito de Sucessão e Herdeiros, o abuso do Direito Autoral se dá principalmente nas relações contratuais. Muitos sucessores que herdam os direitos patrimoniais da obra do autor falecido resistem em realizar contratos de cessão e licenciamento. Assim, os herdeiros impedem que a obra seja utilizada livremente.
A perpetuação dos abusos
De acordo com a nossa Lei, a proteção do Direito Autoral continua por até 70 anos após a morte do autor. Por consequência, os herdeiros podem se beneficiar economicamente da obra nesse período de tempo.
É interessante notar que o prazo da LDA brasileira é 20 anos maior do que o prazo internacional estabelecido pela Convenção de Berna de 1886. Provavelmente, o motivo da fixação de um prazo mais longo não foi apenas evitar que os herdeiros ficassem desamparados. O objetivo principal talvez fosse aproveitar ao máximo o potencial econômico da obra.
Esse tempo entre a morte do autor e a chegada das obras no Domínio Público gera dois riscos. O primeiro deles é que a obra perca relevância cultural, já que os herdeiros podem não ser aptos para a gestão da criação. Já o segundo foca em uma possível mancha na reputação do autor falecido, já que o comportamento dos herdeiros pode influenciar negativamente na ideia que o público tem da obra e do autor.
Portanto, podemos definir o abuso como um desvio da função social do Direito Autoral. Mesmo que a parte dos direitos morais seja tão importante quanto, é na área dos direitos patrimoniais que ocorrem mais abusos.
Os Herdeiros e os Direitos Autorais
Os contratos de cessão e de licenciamento permitem a utilização dos Direitos Autorais. Por meio deles, os herdeiros decidem onde, como, quando e se a obra será explorada. Neste sentido, alguns herdeiros podem dificultar o uso justo das obras através dos direitos morais transmissíveis do autor falecido.
Um exemplo interessante é o do grafite feito pelos artistas “Os Gêmeos” no Museu Oscar Niemeyer, em setembro de 2021. O grafite foi feito na fachada do museu para promover a exposição dos artistas. No entanto, Paulo Niemeyer, o bisneto do arquiteto, criticou a intervenção e acionou a Justiça para apagar o grafite.
Nesse sentido, é possível distinguir dois tipos de autores, a partir do tipo de relação que tinham com o falecido. Assim, o “herdeiro participante” é aquele que já era próximo da gestão dos Direitos Autorais do autor que morreu. Já o segundo tipo é o “herdeiro não-participante”, aquele que não conhece muito sobre a obra e nem participou de nenhuma fase da criação.
Pensando nisso, podemos imaginar que o segundo tipo de herdeiro é o que mais visa ao lucro, assim como é o mais propenso a cometer abusos. Portanto, é interessante refletir sobre a criação de um órgão de fiscalização, consulta e assistência de direitos autorais, que regule essa situação.
Conselho Nacional de Direito Autoral
A questão do Direito de Sucessão e Herdeiros é bem complicada, principalmente quando aplicada ao Direito Autoral. Nesse sentido, o conflito entre a esfera pública e a esfera privada é constante. Isto se dá principalmente pelos abusos dos herdeiros.
No entanto, a interferência ou não do Estado na propriedade privada é um tema que rende discussões acaloradas. É importante assegurar que a proximidade do Estado não se torne uma censura para as criações intelectuais. Mesmo assim, é válido pensar de que forma o Estado pode agir para minimizar os efeitos da má gestão dos Direitos Autorais, tendo em vista os interesses sociais.
A licença compulsória é utilizada em alguns desses casos. É uma ferramenta bastante útil em situações como a das obras órfãs. No entanto, ela não sustenta outras formas de abuso. Da mesma forma, as associações de Gestão Coletiva, por exemplo, poderiam orientar os herdeiros e prestar assistência nas negociações. Só que esse processo seria muito custoso e talvez não desse conta do volume de solicitações.
Na legislação brasileira de 1973, estava previsto o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA). Este órgão tinha justamente essa função de fiscalização, além de inclusive ser responsável por dividir a gestão com os herdeiros. No entanto, este Conselho foi extinto e hoje em dia não atua mais.
Quer saber mais? Leia o nosso texto sobre a Gestão Coletiva de Direitos Autorais.
Direito de Sucessão e Herdeiros
O Direito de Sucessão é uma instituição complexa, especialmente quando envolve questões como bens digitais ou direitos autorais, tão comuns à sociedade informacional em que vivemos. É necessário ainda avaliar de que forma os bens do falecido no ambiente digital, tanto financeiros quanto sentimentais, serão geridos após a sua morte.
A privacidade e a honra do falecido devem ser mantidas, e muitas redes sociais já se preocupam com o caso, adicionando cláusulas sobre esse assunto nos seus termos de uso. Da mesma forma, o autor falecido ainda faz valer o seu Direito Autoral, que deve garantir os direitos patrimoniais para amparar os herdeiros.
No entanto, em caso de abuso por parte dos herdeiros, a entrada da obra no Domínio Público e os interesses da sociedade devem ser prioridade. Nesse sentido, a antiga instituição do Conselho Nacional de Direito Autoral serviria muito bem para mediar essas situações.
A estrutura original do CNDA já estava pronta para impedir abusos e lidar com conflitos entre autores, coautores, herdeiros e a sociedade. Dessa forma, atualmente, o CNDA poderia moldar um núcleo de gestão solidária e compartilhada, que administraria as obras no período que antecede o Domínio Público.
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