O Direito de Autor europeu e a Cultura
Seja na Europa ou em qualquer outro continente, o Direito de Autor está intimamente ligado à Cultura. No entanto, a função cultural do Direito Autoral tem sido deixada de lado nas últimas décadas, principalmente por conta do lado comercial da lei. Este aspecto rígido e voltado para o lado econômico pode afetar o interesse público, além dos estímulos à cultura.
Nesse sentido, a União Europeia (UE) chama a atenção pelo seu protagonismo na defesa da cultura através do Direito de Autor. Pode-se dizer que sua história, valores e influência são a principal motivação para esse interesse na cultura.
Para este texto, abordaremos o assunto com base no artigo “O Direito de Autor Europeu entre Mercados, Flexibilidades e Cultura: uma visão crítica”, escrito por Marcos Wachowicz e Pedro de Perdigão Lana, pesquisadores do GEDAI.
Direito de Autor europeu
O Direito Autoral não é igual em todos os lugares do mundo. No entanto, os diversos modelos nacionais acabaram se aproximando nos últimos anos graças a regras internacionais. Como exemplos, podemos citar o ADPIC/TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio) e a Convenção de Berna.
Estas regras são um esforço de padronização do Direito de Autor, mas se tornaram muito focadas nas relações financeiras, deixando o interesse público sobre a cultura de lado. Assim, a União Europeia deve balancear corretamente os interesses econômicos e sociais, especialmente quando pensamos em liberdade de informação. O Direito português é uma boa base para se partir, já que é intermediário, além de ter uma forte preocupação em Portugal de se defender o patrimônio cultural nacional.
No entanto, as transformações do Direito de Autor também têm como base os vários avanços tecnológicos que vêm acontecendo nas últimas décadas. Nessa área, principalmente na internet, a União Europeia se destaca na proteção da propriedade intelectual. Da mesma forma, houve na União uma tentativa de se criar uma legislação comunitária.
Isso se justifica na preocupação da União Europeia em impedir que as diferenças entre as leis internas dos Estados membros tenham impactos negativos no mercado interno europeu. Também podemos acrescentar como objetivo o melhor uso das tecnologias de comunicação e informação em prol da economia.
Apesar dessa tentativa de uniformizar a lei autoral europeia ter falhado, existe uma certa normatização das regras. No entanto, essa regulamentação não é homogênea e é tratada de forma diferente pelos países membros.
As fases da regulamentação
O Direito de Autor europeu é, em essência, muito rígido. Podemos notar essa rigidez nos seguintes pontos:
- grande abrangência dos direitos econômicos;
- ampla interpretação dos direitos autorais;
- exceções e limites vistos como regra, em uma lista limitada com interpretação restrita, ainda submetidas à Regra dos Três Passos.
Essa rigidez representa um grande obstáculo no processo de adaptação às frequentes mudanças que acontecem a todo momento na sociedade informacional e tecnológica em que vivemos.
Nesse processo, vemos três fases da comunitarização:
- Primeira: marcada por hostilidade, entendia a exclusividade do Direito de Autor como um obstáculo à livre concorrência na União Europeia, mas estava aberta a uma conciliação;
- Segunda: a partir de 1993, motivada pela pressão e competição com os Estados Unidos sobre as regras de tutela dos bens informáticos. A União inclusive ultrapassou o nível de proteção dos EUA.
- Terceira: a partir de 2004, foi uma reação à proteção exagerada da segunda fase. Uma certa regressão à primeira fase ressuscitou a preocupação com a livre concorrência e o acesso à cultura.
Nesse cenário, os muitos monopólios causavam prejuízo à concorrência e à integração econômica da União Europeia. As Recomendações se tornaram o foco das legislações, ou seja, o uso de intervenções mais leves. A partir de 2009, diversas intervenções judiciais causaram certas mudanças que poderiam ser vistas como uma forte característica da terceira fase, ou ainda, a construção de uma quarta fase.
Assim, entre 1991 e 2001, a década foi marcada pela elevada produção de Diretivas. Em seguida, a utilização de soft laws, entre 2001 e 2009, marcou uma fase de consolidação. Por último, houve um período de grande atividade do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Portanto, podemos entender o TJUE como ator de destaque no nivelamento da legislação.
Soft Laws e a face comercial do Direito de Autor
Soft Law é uma expressão que pode ser traduzida como “direito flexível”. É um conceito que pode parecer contraditório, já que a ideia de lei presume uma certa rigidez oposta a flexibilidade da soft law. Assim, esse “direito flexível” seria um conjunto de regras que não necessariamente têm força jurídica, mas que produzem efeitos jurídicos.
Assim, a soft law tem um certo grau de força jurídica que, dependendo do contexto, se apresenta em uma gama variada. Nesse sentido, essa força pode se tornar uma boa base de interpretação dos juízes, já que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia deve levar em conta as soft laws. Da mesma forma, o uso indevido da soft law pode ser negado pelo TJUE.
Assim, as Recomendações podem ser entendidas como formas de aplicação da soft law. No entanto, em caso de não obediência, as Recomendações podem ser seguidas de atos impositivos, o que confere a elas um efeito jurídico vinculativo.
Soft laws e os interesses comerciais
Além das soft laws, existem outros instrumentos de regulação como:
- códigos de conduta;
- programas de ação;
- as comunicações;
- as resoluções;
- os pareceres.
É fácil perceber que a área do Direito de Autor precisa ser dinâmica, especialmente por causa da sua íntima relação com as tecnologias e inovações. No entanto, a regulação europeia, por conta de sua grande rigidez, é mais inflexível sobre essas questões. Assim, a soft law acaba encontrando desafios no Direito Autoral europeu.
Além disso, o foco da legislação recai sobre o ambiente econômico, de forma que atende aos interesses comerciais das instituições de gestão coletiva e demais empresas, mas se restringe quando o assunto são interesses culturais.
Neste sentido, há uma contradição. Por que então a soft law é mais utilizada em outras áreas comerciais da Europa, mas não tem o mesmo peso no Direito Autoral? A resposta para essa pergunta pode estar na interpretação incorreta da postura do Direito de Autor. Assim, essa visão pode entender que a proteção autoral visa à segurança do titular do direito patrimonial que, geralmente, é uma empresa.
Assim, enquanto no campo comercial a flexibilidade das leis beneficia os interesses econômicos, na área intelectual do Direito as soft laws garantiriam o acesso das pessoas às obras protegidas, o que poderia causar certo prejuízo financeiro. Portanto, a nivelação e internacionalização dos direitos é desejável e benéfico, mas necessita ser feita com cautela.
A harmonização e as Diretivas
No processo de harmonização dos ordenamentos, a divisão de funções internas é um dos pontos mais complicados e menos claros do Direito Comunitário. Essa fase depende de variáveis, como a aprovação da legislação pelo Conselho, a jurisprudência dos TJUE e as decisões políticas dos órgãos da União.
Nesse sentido, podemos entender as Diretivas como os atos legislativos mais importantes para o direito de autor. No entanto, as instâncias nacionais são a principal ferramenta de harmonização comunitária, principalmente por estimular a concorrência.
Até a década de 1990, a redação das Diretivas era bastante precisa, reduzindo o rol de possibilidades de escolhas e interpretações dos Estados membros. Mesmo assim, a rigidez tanto dessa descrição minuciosa, quanto da aplicabilidade imediata das Diretivas não é tão forte.
Assim, o TJUE determinou que, caso ocorra uma demora na harmonização, os tribunais nacionais poderão aplicar as Diretivas.
A prevalência do Direito da União
No Tratado da União Europeia (TUE), há a garantia dos princípios da liberdade e a proteção dos direitos fundamentais. Da mesma forma, no TUE constam também os princípios da subsidiariedade, da proporcionalidade, da cooperação, do respeito pela identidade nacional e da atribuição. Nesse processo de integração entre as legislações europeias, o princípio do primado surge como uma resposta que sobrepõe o direito comunitário sobre os direitos nacionais.
Juntamente com o princípio do primado, o princípio do acervo da união garante que os Estados da União devem respeitar o direito comunitário. Para isso, as leis nacionais, inclusive as constitucionais, não devem se opor ao direito comunitário. No entanto, os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade surgem como uma reação para promover o equilíbrio dos poderes entre a União Europeia e os Estados membros.
Assim, o princípio da subsidiariedade é uma espécie de filtro entre a decisão da União Europeia e a possibilidade de colocá-la em prática. Esse princípio respeita a vontade dos países membros, mas a UE pode atuar caso as ações dos Estados não sejam suficientes ou caso as intervenções da União tenham mais eficácia. Já o princípio da proporcionalidade tem como função principal evitar que haja um excesso de regras, bastante utilizado quando há algum conflito entre os direitos fundamentais.
Sendo assim, as ações da União Europeia devem respeitar três princípios, que devem passar por uma análise a partir de medidas objetivas. São eles:
- a medida deve ser adequada ao objetivo;
- deve-se buscar alternativas menos restritivas;
- balancear os interesses envolvidos.
Diretivas e Recomendações
A partir desse equilíbrio é que surge a possibilidade de uma legislação mais flexível, que aproveite as soft laws na orientação dos Estados membros. Isto porque o Direito de Autor europeu não considera suficientemente a soberania dos países membros. Assim, o princípio da territorialidade é um ponto central.
Historicamente, as Diretivas da União Europeia deixaram de lado o estímulo ao mercado interno e focaram em interesses específicos, dentre eles, as empresas do setor. Nesse sentido, as Recomendações seriam uma opção melhor para evitar esse tipo de contradição.
Por que o lado comercial dos Direitos Autorais é importante para o mercado interno, a UE foca em uma melhor gestão dos bens intelectuais. No entanto, deixando de lado exceções como a indústria farmacêutica, nem todos os bens protegidos pela propriedade intelectual alcançam o objetivo de incentivar a inovação ou o bem-estar social.
Nesse sentido, é importante questionar a forte proteção dos autores e a pouca preocupação com o interesse público. Assim, essa busca por uma harmonia nas legislações que equilibrem corretamente os interesses envolvidos deve visar à proteção da cultura.
A proteção da Cultura
Vimos que existe um conflito entre o Direito de Autor e a Cultura, especialmente quando o assunto é os direitos intelectuais na União Europeia. Quando pensamos no princípio da identidade nacional, conseguimos inferir que junto com ele vem também o respeito à identidade cultural. Sendo assim, a União também tem como responsabilidade a proteção cultural europeia.
Nesse sentido, o princípio da territorialidade no direito de autor está diretamente relacionado à diversidade cultural entre os países. Por conta disso, é preocupante que o Direito de Autor retorne à sua face medieval de censura e defesa de privilégios.
Diferentemente dos EUA, onde a liberdade de expressão é extremamente importante, na União Europeia a liberdade de informação é muito valorizada. Assim, esses direitos fundamentais são priorizados quando regras da União, como as Diretivas, entram em conflito. As soft laws também entram nesses casos para auxiliar na resolução dos problemas, sem que haja prejuízo para as culturas dos países da União.
Assim, as violações que forem no sentido contrário à harmonização comunitária ainda poderão ser aprovadas pelos tribunais e sistemas nacionais. Isto manteria certa dinamicidade e poderia ser muito bem aproveitado no contexto das novas tecnologias.
O Direito de Autor e a Cultura na União Europeia
A responsabilidade sobre a proteção da Cultura não deve cair apenas em cima da União, mas também sobre os países membros. Os Estados nacionais podem preservar e defender sua cultura de diversas formas. Assim, a organização das nações através de regulamentações internacionais já é um bom começo. Além disso, é possível obter controle legislativo mesmo após a publicação das Diretivas.
No entanto, órgãos da União, como o Tribunal de Justiça da União Europeia, devem evitar barrar países que estejam promovendo fins culturais comunitários. A partir da defesa da cultura, da liberdade e do acesso à informação, os Tribunais podem agir contra abusos às regras comunitárias ou nacionais na área do Direito de Autor.
Uma regulamentação bem construída poderá priorizar os interesses econômicos do Direito de Autor, mas sem deixar de lado a Cultura ou os interesses sociais. Assim, a União Europeia está em boa posição para promover a proteção da Cultura, porque tem enraizada em si valores culturais de diversidade e pluralidade.
Além disso, o Tribunal de Justiça da União já se sensibilizou com a questão do interesse público. Da mesma forma, a importância que os países europeus dão à liberdade da informação pode servir como motivador da proteção cultural. Por fim, os Estados membros podem pressionar a União caso percebam que seus atos se desviaram dos princípios comunitários.
Quer saber mais?
Para ter acesso na Integra do artigo “O Direito de Autor Europeu entre Mercados, Flexibilidades e Cultura: uma visão crítica”, acesse o link: MARCOS WACHOWICZ – PEDRO LANA
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