Carruagens sem cavalos e obras sem autores: Os desafios enfrentados pelo ordenamento jurídico brasileiro frente às obras produzidas por tecnologias de inteligência artificial
Maria Eduarda Fonseca de Oliveira
Instituto Observatório do Direito Autoral
Janeiro de 2022
Introdução
“Os versos [da canção] eram elaborados – sem nenhuma intervenção humana – por um instrumento conhecido como versificador” (1) , narra o autor George Orwell na obra “1984”, publicada em meados do século XX.
O fenômeno de utilização da inteligência artificial para desenvolvimento de obras literárias, artísticas e científicas, antes distópico e meramente imaginativo, torna-se cada vez mais presente na contemporaneidade. Através de inputs de dados em tecnologias algorítmicas, um novo quadro de Rembrandt é gerado (2), a sinfonia inacabada de Beethoven é composta (3) e, gradualmente, os fundamentos dos direitos autorais são colocados em xeque.
Shoshana Zuboff afirma que “quando nos deparamos com algo sem precedentes, nós o interpretamos de modo automático através da lente das categorias familiares”. A autora alude à noção de “carruagem sem cavalos”, à qual as pessoas recorriam diante da novidade do automóvel (4) .
Fenômeno semelhante é percebido quando operadores do direito deparam-se com obras literárias, artísticas ou científicas produzidas por máquinas. Os direitos autorais são imediatamente aludidos para garantir a proteção jurídica das “obras sem autores”, ainda que tal enquadramento vá de encontro às justificativas subjacentes das normas autoralistas. No presente artigo, para a devida compreensão do imbróglio, discute-se (i) a natureza dos direitos autorais; (ii) os conceitos de “obra” e “autoria” no ordenamento jurídico brasileiro; e (iii) as possíveis abordagens jurídicas à temática.
1. A natureza dos direitos autorais
A Lei n. 9.610/98 (LDA) diferencia os direitos autorais previstos entre “morais” e “patrimoniais”. Direitos morais são intransferíveis, irrenunciáveis e, em regra, transmitidos a sucessores, enquanto direitos patrimoniais são limitados pelo decurso do tempo.
Para Antônio Chaves (5), tais relações jurídicas possuem natureza pessoal-patrimonial. Por um lado, como destaca Denis Diderot, é acolhida a tese de que a obra artística emana da personalidade do autor, sendo fruto de sua educação, estudos, noites insones, pesquisas e observações (6). Por outro, a legislação admite o viés econômico das exteriorizações de
manifestações de espírito: como as produções criativas são bens lucrativos, a propriedade sobre o produto do trabalho intelectual é reconhecida ao autor (7).
Percebe-se que a justificativa subjacente à proteção autoral é antropocêntrica. Assim, obras produzidas por tecnologias de inteligência artificial desafiam o paradigma clássico deste domínio jurídico. Nesta nova configuração, quais direitos serão garantidos? A quem (ou “o que”) serão atribuídos? Tais feitos podem ser considerados “obras” para fins legais? Há de ser analisado, pois, o conceito de “obra” e “autoria” para o ordenamento jurídico brasileiro.
2. Os conceitos de “obra” e “autoria” no ordenamento jurídico brasileiro
O caput do art. 7° da LDA prevê que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”. Extrai-se deste artigo três requisitos para a caracterização das “obras” dignas de proteção: (i) advir do intelecto humano, sendo criação do espírito; (ii) estar expressa ou fixada, excluindo ideias não materializadas; e (iii) exprimir originalidade, isto é, possuir identidade e individualidade (8).
Obras produzidas por inteligência artificial enquadram-se na zona cinzenta da norma. Apesar de fixadas, tais obras não podem ser caracterizadas como “criações do espírito”, uma vez que são meramente derivadas do tratamento de bases de dados. Para além dos atos preparatórios, são produtos de inputs em modelos matemáticos sem qualquer intervenção
humana direta na confecção. Além disso, tendo em vista que produções desenvolvidas por máquinas advém do enriquecimento de bases de dados com obras de interesse ou similares, a originalidade do processo é questionável.
Sob perspectiva diversa, há quem defenda que as dinâmicas das máquinas assemelham-se com o funcionamento da psique humana. Em alusão ao velho ditado “nada se cria, tudo se transforma”, as criações do espírito humano também consistiriam no tratamento de inputs recebidos ao longo da trajetória de vida do autor. No entanto, em oposição aos modelos tecnológicos exatos, no curso da produção intelectual humana, ainda que recheada de referências e inspirações de obras pretéritas, há traços de personalidade, criatividade e estilo inerentes à atividade. Como apresentado, decorrem desta percepção os direitos autorais de natureza moral. Atentar contra a obra, em última instância, corresponde a atentar contra o autor, sendo esta a manifestação de suas escolhas, gostos e individualidade. Diferentemente do trabalho desempenhado por mecanismos de inteligência artificial, imbuídos de características industriais.
O conceito de “autor” também projeta-se como um desafio. Segundo o art. 11 da LDA, “autor é a pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica”. O dispositivo, apesar de condicionar a autoria à pessoa natural, admite, no parágrafo único, a atribuição de direitos autorais a pessoas jurídicas. Em paralelo, a alteração legislativa do ano de 2013 contemplou a figura do “titular originário”, incluindo – além de autores, intérpretes, executantes e produtores fonográficos – as empresas de radiodifusão. Assim, ainda que negue a designação de autoria, a legislação brasileira permite a titularidade, tanto originária quanto derivada, de direitos autorais a pessoas jurídicas.
Em casos de obras produzidas por inteligência artificial, resta notório que as máquinas não poderiam ser consideradas autoras. No entanto, quem há de desempenhar este papel, uma vez que não há pessoa física criadora? É possível atribuir autoria àquele que inseriu os dados na base e determinou o início da operação? Seria uma contribuição autoral suficientemente robusta?
3. As possíveis abordagens jurídicas à temática
Sem a intenção de exaurir a discussão, nesta seção, debate-se três possíveis abordagens para a temática da proteção de obras literárias, artísticas e científicas produzidas por inteligência artificial em solo nacional: (i) o regime de domínio público; (ii) a atribuição de direitos autorais às pessoas físicas e/ou jurídicas envolvidas na operação; e (iii) a criação de direitos sui generis.
Aqueles que defendem o regime de domínio público para assentar a questão visam a equiparar as “obras sem autor” àquelas produzidas por autores humanos desconhecidos, nos termos do art. 45, II da LDA. Tal linha argumentativa sopesa as contradições jurídicas emergentes do processo criativo automatizado e entende que não há elementos suficientemente sólidos nestas criações para que seja conferida proteção tão relevante quanto dos direitos autorais. Ressalta-se que, sob perspectiva econômica, tal abordagem dissuade investimentos nesta espécie de tecnologia, uma vez que os direitos do produto intelectual artificial não seriam atribuídos ao desenvolvedor, mas repartidos e aproveitados por todos aqueles que compõem o meio social (9)
A segunda abordagem diz respeito à atribuição de direitos autorais às pessoas físicas ou jurídicas envolvidas, ainda que indiretamente, na confecção destas obras. Tal entendimento encontra eco no direito comparado: No Reino Unido, o “autor” de obras geradas por inteligência artificial, definido como “a pessoa que realizou os procedimentos necessários para o desenvolvimento da obra”, goza da tutela de direitos autorais por 50 anos (10).
Neste sentido, no Brasil, há quem defenda que obras produzidas por tecnologias de inteligência artificial sejam classificadas como “obras coletivas”. O art. 17 da LDA determina que é assegurada a proteção às participações individuais em obras coletivas, cabendo ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto. Tal designação é interessante por considerar o papel colaborativo, ainda que restrito, do ser humano e cumprir a exigência da presença de autores – pessoas físicas – na fase de desenvolvimento da obra. Além disso, atividades desta natureza desempenhadas dentro de estruturas empresariais são privilegiadas, uma vez que, sendo organizadora da operação, a pessoa jurídica é considerada titular originária dos direitos econômicos da obra.
Por fim, há de se discorrer acerca da possibilidade de criação de uma nova espécie de direito conexo, visando à tutela de obras geradas por tecnologias. Tal abordagem condiz com a sistemática da LDA, uma vez que contorna os aspectos desafiadores do senão, albergando as contradições do advento para com a legislação vigente.
Não seria a primeira vez em que as normas autoralistas se adaptariam às novas tecnologias e seriam utilizadas para retificar falhas de mercado, deslocando-se do paradigma clássico para atender interesses da indústria criativa. Os sinais das empresas de radiodifusão, por exemplo, são protegidos por direitos conexos. Segundo o art. 95 da LDA, cabe a tais empresas o direito exclusivo de autorizar e proibir utilizações destes sinais.
As abordagens tendentes à proteção jurídica, contudo, não estão isentas de críticas. Conforme explicitado na seção I, a tutela conferida por direitos autorais é expressiva por tratar de manifestações criativas do espírito humano. A temática não envolve apenas aspectos patrimoniais, comerciais ou industriais. Perigoso é o alargamento dos direitos autorais visando a agasalhar dinâmicas diversas daquelas que o campo jurídico originalmente se propunha.
Neste sentido, José de Oliveira Ascensão convida a refletir sobre a desejabilidade da proteção indiscriminada a bens culturais isentos de criatividade:
“A sociedade evoluiu para a cultura de massas, que é a do nosso tempo. E isso levou a uma banalização da obra protegida. O nível de criatividade reclamado é cada vez mais baixo, roçando o zero: leva a perguntar se ainda se requer criatividade ou se basta a originalidade. Quando não a mera novidade, em aproximação do que acontece no Direito Industrial, pelo menos no sector dos sinais distintivos do comércio. A metamorfose coincide com a mercantilização do domínio criativo. A entidade principal no Direito de Autor continua a ser apresentada como se fosse o criador intelectual, mas na realidade passou a ser a empresa de copyright. Para esta, tanto importa que a obra tenha mérito cultural como que não tenha: o que importa é que venda. Por isso, a exigência de criatividade ou valia cultural apresenta-se como um empecilho inútil. Os direitos valem apenas como mercadoria” (11).
Considerações finais
Em linhas gerais, o presente artigo buscou apresentar ao leitor problemáticas relacionadas às obras intelectuais geradas por tecnologias de inteligência artificial. O processo de criação automatizado desafia o conceito de “obra protegida” – “criação do espírito” e “originalidade” – e “autoria” – tipicamente atribuída a pessoas físicas.
Tal qual Winston, protagonista do romance orwelliano, operadores do direito compreendem e racionalizam a realidade que estão inseridos gradualmente. A vida social impulsiona a ciência jurídica à modernização. Entretanto, mesmo diante do ineditismo contemporâneo – sejam carruagens sem cavalos ou obras sem autores – as velhas questões hão de ser endereçadas. Qual bem jurídico a sociedade está disposta a tutelar? Por qual motivo? De que forma se dará esta tutela?
Referencias
(1) ORWELL, George. 1984. Tradução: Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 167
(2) Para mais informações sobre “The Next Rembrandt”: <https://www.nextrembrandt.com/>
(3) Inteligência artificial compõe fim de sinfonia inacabada de Beethoven, ouça. Tecmundo, 2021. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/ciencia/226333-inteligencia-artificial-compoe-fim-sinfonia-inacabada-beethoven-ouca.html> Acesso em: 16.01.2022.
(4) ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 23.
(5) CHAVES, Antonio. Direitos de autor: princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 6-7.
(6)DIDEROT, Denis. Carta sobre o comércio do livro. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2002, p. 67- 68.
(7) LAHORGUE, Simone. Direito autoral, direito antitruste e princípios constitucionais correlatos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
(8)ABRÃO, Eliane. Direitos de autor e direitos conexos. Rio de Janeiro: Editora do Brasil, 2002, p. 93-94.
(9) ABRÃO, Eliane. Direitos de autor e direitos conexos. Rio de Janeiro: Editora do Brasil, 2002, p. 24-25.
(10) United Kingdom. Intellectual Property Office. Artificial Intelligence and Intellectual Property: copyright and patents. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/consultations/artificial-intelligence-and-ip-copyright-and-patents/artificial-intelligence-and-intellectual-property-copyright-and-patents#copyright> Acesso em: 16.01.2022.
(11) ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de autor e liberdade de criação. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC – volume 33.2, 2013, p. 305-306. Disponível em <https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/12141/1/2014_art_joascensao.pdf> Acesso em: 16.01.2022.