Big Techs versus mídia do entretenimento: conflito ético e regulatório na era da IA
Recentemente nova polêmica judicial nos Estados Unidos envolvendo a industria do entretenimento, conglomerados do setor audiovisual, como Disney e Universal conforme noticiado pela grande mídia, ajuizaram ações contra a empresa de tecnologia Midjourney, evidenciando os desafios jurídicos emergentes na interface entre inteligência artificial generativa e propriedade intelectual.
A controvérsia gira em torno da suposta utilização não autorizada de acervos protegidos para o treinamento de modelos capazes de criar obras derivadas de personagens consagrados, o que tem sido interpretado como exploração indevida e plágio sistemático.
Além das questões legais tradicionais, esse conflito suscita importantes questionamentos sobre o impacto da automatização e padronização da criação artística no espaço público cultural.
A crescente digitalização e proliferação de informações geradas algoritmoicamente podem reduzir a diversidade de vozes e dificultar a interação discursiva autêntica, valores fundamentais para a vitalidade democrática e cultural.
A supremacia atribuída ao processamento massivo de dados para geração de conteúdo coloca em xeque a subjetividade humana e o juízo crítico, elementos essenciais para a autonomia criativa e o reconhecimento legítimo dos direitos autorais.
É preciso ter-se claro que, essas novas formas de produção de conteúdo, imbricadas entre inteligência artificial e mídia de massa, podem contribuir para um cenário em que a participação democrática se torna precária, vulnerável à manipulação por algoritmos sofisticados que substituem o debate genuíno por processos automatizados.
Assim, a discussão extrapola o âmbito jurídico para abarcar as implicações sociais, políticas e culturais da convergência entre tecnologia digital, criação artística e democracia.
Os limites da proteção jurídica da obra em sí e a apropriação do estilo do autor pela IA Generativa.
O direito autoral protege a obra em sua forma concreta, e não o estilo abstrato que dela deriva. Historicamente, o debate sobre propriedade intelectual e a apropriação de gêneros artísticos consagrados não é novidade.
Por exemplo, as obras de Picasso e Salvador Dalí são amplamente protegidas e reconhecidas mundialmente, e embora ambos tenham dado origem a movimentos e estilos — como o cubismo — esses estilos, enquanto conceitos abstratos, permanecem livres para inspiração e criação de novas obras resultantes do esforço intelectual e criativo humano.
Entretanto, a emergência da inteligência artificial generativa traz novos contornos para essa questão jurídica, uma vez que, diferentemente da criação humana, essa tecnologia não se baseia em um esforço criativo consciente, mas em treinamentos realizados com vastos acervos de obras de artistas consagrados.
Isso levanta dúvidas sobre até que ponto a reprodução ou emulação de estilos artísticos por meio de algoritmos pode ser protegida, ou se caracteriza uma apropriação indevida, especialmente considerando a escala e a velocidade com que essas criações são disseminadas.
Um exemplo recente ilustra essa nova dinâmica: em março passado, imagens no estilo dos famosos desenhos japoneses do Studio Ghibli viralizaram nas redes sociais, geradas por meio de uma funcionalidade presente em uma versão do ChatGPT da OpenAI, que tem levandado amplo debate jurídico.
Esse fenômeno evidencia como a tecnologia AI não apenas reproduz estilos já existentes, mas também populariza e massifica a produção cultural com base em criações prévias, num contexto em que os processos tradicionais de proteção, autoria e reconhecimento são desafiados por uma lógica algorítmica que dilui as fronteiras entre originalidade e reprodução.
Inteligência artificial e o conflito dos direitos autorais: o caso dos artistas em plataformas digitais.
As plataformas digitais apresentam um cenário complexo no que diz respeito à proteção dos direitos autorais, especialmente no que toca à reprodução de estilos ou gêneros artísticos.
Embora essas plataformas geralmente impeçam a imitação direta de imagens de artistas vivos, não existe uma amparo legal claro que proteja estilos visuais ou gêneros artísticos em sentido mais amplo.
Por exemplo, as obras do Studio Ghibli — fundado em 1985 por Hayao Miyazaki, Isao Takahata e Toshio Suzuki e conhecido por produções memoráveis como “A Viagem de Chihiro” (2001) — têm seu estilo facilmente reconhecível, mas esse reconhecimento não se traduz em proteção jurídica contra a apropriação ou reprodução digital desses elementos visuais.
Esta lacuna legislativa se torna ainda mais evidente quando se analisa o impacto das tecnologias de inteligência artificial.
Em 2023, a greve dos roteiristas de Hollywood trouxe à tona preocupações urgentes relacionadas ao uso dessas ferramentas no setor audiovisual.
A substituição de dubladores por vozes sintetizadas, a aplicação de efeitos digitais para rejuvenescimento e o escaneamento facial de atores, permitindo o uso das imagens indefinidamente e sem consentimento explícito, suscitam debates sobre até que ponto as tecnologias digitais podem invadir a esfera da autoria, da personalidade e da proteção da imagem.
Esses desenvolvimentos levantam importantes questionamentos:
Até que ponto a reprodução ou emulação de estilos artísticos por inteligência artificial configura uma apropriação indevida? Qual é o limite entre a inspiração legítima e a violação dos direitos dos criadores?
As tecnologias digitais, ao popularizar e massificar a produção cultural baseada em estilos consagrados, diluem as fronteiras entre originalidade e reprodução.
Como equilibrar o potencial criativo dessas inovações tecnológicas com a necessidade de garantir a integridade e o reconhecimento do trabalho autoral? E, sobretudo, como se preservar a autonomia dos artistas e a proteção de sua imagem num cenário em que a informação e a produção cultural são cada vez mais digitalizadas e automatizadas?
Essas questões desafiam as estruturas tradicionais de direitos autorais e apontam para a necessidade urgente de revisão e atualização das normas legais, de modo a responder a um regime informacional em rápida transformação e garantir a justiça cultural e artística na era digital.
IA generativa e apropriação de conteúdos: riscos à integridade e pluralidade do discurso público.
A crescente adoção de plataformas digitais e ferramentas de inteligência artificial generativa traz à tona questões cruciais no âmbito do Direito Digital e da Propriedade Intelectual.
A indústria jornalística, por exemplo, tem sofrido significativamente com a apropriação e o uso não autorizado de seus conteúdos para o treinamento de modelos de IA generativa.
Essas ferramentas utilizam vastos bancos de dados compostos por reportagens produzidas por jornalistas qualificados, que investem trabalho, conhecimento e responsabilidade para assegurar conteúdos pluralistas, independentes e factuais.
A utilização desse acervo jornalístico levanta questionamentos profundos sobre a autoria, a proteção legal e o valor epistemológico da informação digitalizada.
Até que ponto a digitalização e o processamento automatizado de conteúdos jornalísticos por IA podem diluir ou desvalorizar a autoria jornalística? É possível reconhecer uma forma nova de apropriação que se distancia do uso tradicional de conteúdos, sem que haja consentimento ou remuneração aos criadores originais? Essa reprodução massiva de dados e informações não ameaça a diversidade e a qualidade do discurso público, substituindo-o por uma representação fragmentada e manipulável dos fatos?
Além disso, essa dinâmica levanta um debate crucial sobre a própria natureza da autoria e veracidade na era digital:
Como preservar o compromisso com o relato plural e independente diante da crescente automatização de conteúdos? Qual é o papel dos operadores jurídicos e sociais para garantir que a digitalização e a IA não acabem por fragilizar os fundamentos democráticos que dependem do acesso a informações confiáveis e verificadas? A proliferação informacional alimentada por essas tecnologias não estaria, paradoxalmente, contribuindo para uma crise do discurso público, diante da incapacidade humana de processar e avaliar em profundidade esse excesso de informações?
Essas inquietações mostram o desafio contemporâneo de harmonizar os avanços tecnológicos com a preservação dos direitos autorais, a integridade editorial e a qualidade do debate público, levantando a necessidade de uma revisão crítica das estruturas normativas e das práticas sociais diante do regime digital de informação.
Na Sociedade Informacional, onde algoritmos manipulam a opinião pública e fake news se propagam com velocidade viral, a ética surge como o último bastião indispensável para preservar a transparência, a verdade e a própria essência da democracia diante do poder incontestável das Big Techs e da mídia tradicional.
Direito autoral e a crise informacional: reflexões sobre a regulação da plataformas digitais com o uso da IA Generativa.
A celebração de contratos entre grandes grupos de comunicação e empresas de inteligência artificial, autorizando o licenciamento de conteúdos para o treinamento de modelos linguísticos – com a disponibilização de resumos, links e extratos mediante pagamento – evidencia uma face complexa da relação entre plataformas de IA e a mídia tradicional.
Entretanto, a insatisfação generalizada da maior parte da imprensa com os valores ofertados, acompanhada das disputas judiciais em curso por remuneração justo, destaca um conflito latente no ambiente digital.
Esse contexto suscita questionamentos fundamentais acerca da proteção dos direitos intelectuais e da sustentabilidade econômica da produção jornalística.
Como garantir que o uso desses conteúdos por tecnologias de IA respeite a autoria original e preserve o incentivo à criação de material inovador e plural?
A ausência de transparência e a falta de regulamentação específica para o uso de dados jornalísticos nas inteligências artificiais podem minar princípios essenciais para a produção artística e informativa, colocando em risco a diversidade cultural e o próprio funcionamento democrático.
Em uma perspectiva crítica, essa dinâmica evidencia uma possível tensão entre a racionalidade digital – caracterizada pela supremacia do processamento automatizado de informações e pela otimização dos dados – e a racionalidade comunicativa, que pressupõe diálogo fundamentado e argumentativo, essencial para a esfera pública democrática.
A substituição da interação discursiva pela mera manipulação e agregação de dados promove uma crise de legitimidade, pois restringe a capacidade dos indivíduos de fundamentar seus discursos e exercer controle sobre a informação consumida.
Portanto, a conclusão que emerge é que a regulamentação do uso de conteúdos para treinamento de IA precisa avançar para além do mero contrato comercial, incorporando princípios éticos que assegurem transparência, remuneração adequada e preservação da integridade autoral.
Só assim será possível equilibrar os benefícios da inovação tecnológica com a manutenção da diversidade cultural, da qualidade informativa e da participação democrática.