{"id":2962,"date":"2022-03-15T13:15:47","date_gmt":"2022-03-15T16:15:47","guid":{"rendered":"https:\/\/data.ioda.org.br\/?p=2962"},"modified":"2024-12-07T13:16:07","modified_gmt":"2024-12-07T16:16:07","slug":"protecao-intelectual-de-obras-produzidas-por-sistemas-baseados-em-inteligencia-artificial-uma-visao-tecnicista-sobre-o-tema","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/data.ioda.org.br\/publicacoes\/artigos\/protecao-intelectual-de-obras-produzidas-por-sistemas-baseados-em-inteligencia-artificial-uma-visao-tecnicista-sobre-o-tema\/","title":{"rendered":"Prote\u00e7\u00e3o intelectual de obras produzidas por sistemas baseados em intelig\u00eancia artificial: uma vis\u00e3o tecnicista sobre o tema"},"content":{"rendered":"

O estudo de F\u00e1bio Manoel Fran\u00e7a Lobato, vinculado \u00e0 Universidade Federal do Oeste do Par\u00e1, aborda as implica\u00e7\u00f5es da Intelig\u00eancia Artificial (IA) no contexto do Direito Autoral. Com exemplos pr\u00e1ticos e uma an\u00e1lise detalhada das bases tecnol\u00f3gicas e jur\u00eddicas, o autor questiona como as cria\u00e7\u00f5es feitas por sistemas de IA podem ser protegidas por direitos autorais.<\/p>\n

 <\/p>\n

F\u00e1bio Manoel Fran\u00e7a Lobato<\/a>
\n
Universidade Federal do Oeste do Par\u00e1<\/a>
\n{fabio.lobato@ufopa.edu.br}<\/p>\n

1 Introdu\u00e7\u00e3o<\/h2>\n

\u00c9 ineg\u00e1vel a pervasividade da Intelig\u00eancia Artificial (IA) em nossa sociedade. Um exemplo interessante trata sobre o uso da IA no combate a pandemia da COVID-19 [Bullock et al., 2020].
\nNeste trabalho, Bullock e colaboradores conduziram uma revis\u00e3o da literatura categorizando estudos a n\u00edvel molecular, cl\u00ednico e social. Em todos os n\u00edveis o uso da IA foi evidenciado,
\nincluindo atividades como: descoberta de f\u00e1rmacos e desenvolvimento de vacinas; planejamento hospitalar; modelagem de perfis epidemiol\u00f3gicos; e difus\u00e3o de desinforma\u00e7\u00e3o em redes sociais, por exemplo.<\/p>\n

At\u00e9 nas artes a IA est\u00e1 presente. Um caso not\u00f3rio \u00e9 da m\u00fasica \u201cHey Ya!\u201d do grupo OutKast, sucesso nos anos 2000 descrito por [Roberts, 2020]. Nesta \u00e9poca, a ind\u00fastria fonogr\u00e1fica come\u00e7ou a tomar decis\u00f5es baseadas em dados para tra\u00e7ar estrat\u00e9gias a partir de previs\u00f5es dos h\u00e1bitos dos ouvintes. Em um breve resumo, um programa para detec\u00e7\u00e3o de sucesso apontou \u201cHey Ya!\u201d como um hit em potencial, mas o seu lan\u00e7amento n\u00e3o teve o impacto esperado logo de imediato. Recorreram ent\u00e3o ao comportamento do consumidor e colocaram a m\u00fasica pr\u00f3xima entre outros hits do momento, resultado: \u201cHey Ya!\u201d viralizou.<\/p>\n

Este \u00e9 apenas um dos in\u00fameros exemplos de aplica\u00e7\u00e3o de IA nas artes. O advento da aprendizagem profunda possibilitou a constru\u00e7\u00e3o de sistemas capazes de reconhecer o estilo art\u00edstico em pinturas de forma mais acurada [Lecoutre et al., 2017]. A gera\u00e7\u00e3o de conte\u00fado tamb\u00e9m \u00e9 poss\u00edvel, por exemplo, o Deepart customiza imagens a partir de dois inputs: 1) uma
\nimagem a ser customizada; 2) um estilo de pintura [Mao et al., 2017]. A gera\u00e7\u00e3o de m\u00fasicas de acordo com determinados estilos a partir de sistemas baseados em IA, tamb\u00e9m, j\u00e1 \u00e9 poss\u00edvel [Briot et al., 2017].<\/p>\n

Tais possibilidades trazem \u00e0 baila questionamentos acerca da propriedade intelectual de tais obras. Neste ensejo, a quem pertence o direito autoral de uma obra produzida a partir de um sistema baseado em Intelig\u00eancia Artificial? Ao criador da IA? A empresa\/corpora\u00e7\u00e3o que subsidiou o desenvolvimento deste sistema? Ou a pr\u00f3pria IA enquanto entidade criadora?<\/p>\n

Este ensaio visa contribuir com uma vis\u00e3o tecnicista sobre a discuss\u00e3o da aplicabilidade de direito autoral a partir de obras produzidas por IA. O restante do manuscrito encontra-se organizado como segue. Na Se\u00e7\u00e3o 2 apresento um breve contexto da IA, destacando a sua evolu\u00e7\u00e3o conceitual. Na Se\u00e7\u00e3o 3 trato sobre a fronteira de IA e a sua rela\u00e7\u00e3o com a chamada \u201cIA Forte\u201d. O processo de constru\u00e7\u00e3o de um modelo baseado em IA \u00e9 discutido na Se\u00e7\u00e3o 4. Por fim, algumas considera\u00e7\u00f5es finais s\u00e3o feitas na Se\u00e7\u00e3o 5.<\/p>\n

2 O que \u00e9 a Intelig\u00eancia Artificial?<\/h2>\n

A despeito da vis\u00e3o unicionista e ficcional do grande p\u00fablico, onde o rob\u00f4 \u00e9 uma entidade de IA \u00fanica, dotado de consci\u00eancia, capaz de tomar decis\u00f5es racionais em n\u00edvel humano, a IA de fronteira aponta para outra dire\u00e7\u00e3o. Antes de dissertar sobre, \u00e9 necess\u00e1rio entender os motivos pelos quais esta vis\u00e3o est\u00e1 t\u00e3o arraigada. Russel Stuard e Peter Norvig destacam uma declara\u00e7\u00e3o de Hebert Simon em 1957:<\/p>\n

\u201cN\u00e3o \u00e9 meu objetivo surpreend\u00ea-los ou choc\u00e1-los, mas o modo mais simples de resumir tudo isso \u00e9 dizer que agora existem no mundo m\u00e1quinas que pensam, aprendem e criam. Al\u00e9m disso, sua capacidade de realizar essas atividades est\u00e1 crescendo rapidamente at\u00e9 o ponto \u2014 em um futuro vis\u00edvel \u2014 no qual a variedade de problemas com que elas poder\u00e3o lidar ser\u00e1 correspondente \u00e0 variedade de problemas com os quais lida a mente humana.\u201d [Russell and Norvig, 2002]<\/p><\/blockquote>\n

Pr\u00eamio Turing (1975) e Pr\u00eamio Nobel (1978), Hebert Simon contribuiu notavelmente para teorias de decis\u00e3o em organiza\u00e7\u00f5es baseadas em satisfa\u00e7\u00e3o e com racionalidade limitada. Um de seus trabalhos seminais, o livro \u201cThe sciences of the artificial\u201d<\/em> influenciou fortemente a \u00e1rea chamada de \u201cDesign theory\u201d,<\/em> que trouxe bases cient\u00edficas ao projeto de sistemas artificiais – n\u00e3o somente baseadas em IA, mas tamb\u00e9m, \u201cpara todos os campos (do conhecimento) que criam artefatos para desenvolver tarefas ou cumprir objetivos e fun\u00e7\u00f5es\u201d(<\/em>1) [Simon, 1996] – Tradu\u00e7\u00e3o e grifo do autor.<\/p>\n

A perspectiva de que a constru\u00e7\u00e3o de artefatos, tamb\u00e9m chamados de sistemas artificiais – e, refor\u00e7o, n\u00e3o necessariamente baseados em IA, pode vir acompanhado da constru\u00e7\u00e3o de conhecimento, revolucionou alguns campos, dentre os quais a pr\u00f3pria IA, que teve um impulso quando passou a adotar com firmeza o m\u00e9todo cient\u00edfico, onde as hip\u00f3teses passaram a ser submetidas a experimentos rigorosamente projetados [Cohen, 1995].<\/p>\n

Al\u00e9m da ado\u00e7\u00e3o de testes estat\u00edsticos e avalia\u00e7\u00e3o rigorosa de desempenho, o pr\u00f3prio projeto dos sistemas inteligentes passou a ter m\u00e9todos apropriados. Destaco aqui o processo de descoberta de conhecimentos em bases de dados, por seu termo em l\u00edngua inglesa Knowledge Discovery in Databases<\/em> (KDD) proposto no trabalho seminal de Fayyad, Piatesky-Shapiro e Smyth em 1997 [Fayyad et al., 1996] e uma vers\u00e3o mais gen\u00e9rica bastante utilizada em Sistemas de informa\u00e7\u00e3o que \u00e9 o Design Science Research<\/em> (DSR) [Hevner and Chatterjee, 2010, Gregor and Hevner, 2013]. Mais a frente irei dissertar sobre tais metodologias e contextualiz\u00e1-las ao projeto de sistemas inteligentes.<\/p>\n

Mas, o que \u00e9 ent\u00e3o a Intelig\u00eancia Artificial? Empresto aqui algumas defini\u00e7\u00f5es organizadas por [Russell and Norvig, 2002]:<\/p>\n

    \n
  1. \u201c[Automatiza\u00e7\u00e3o de] atividades que associamos ao pensamento humano, atividades como a tomada de decis\u00f5es, a resolu\u00e7\u00e3o de problemas, o aprendizado…\u201d<\/em> [Bellman, 1978]<\/li>\n
  2. \u201cA arte de criar m\u00e1quinas que executam fun\u00e7\u00f5es que exigem intelig\u00eancia quando executadas por pessoas.\u201d<\/em> [Kurzweil et al., 1990]<\/li>\n
  3. \u201cO estudo de como os computadores podem fazer tarefas que hoje s\u00e3o melhor desempenhadas pelas pessoas.\u201d<\/em> [Rich and Knight, 1991]<\/li>\n
  4. \u201cO estudo das computa\u00e7\u00f5es que tornam poss\u00edvel perceber, raciocinar e agir.\u201d<\/em> [Patrick, 1992]<\/li>\n
  5. \u201cIntelig\u00eancia Computacional \u00e9 o estudo do projeto de agentes inteligentes.\u201d<\/em> [Poole, 1993]<\/li>\n<\/ol>\n

    Organizei os conceitos em ordem cronol\u00f3gica para evidenciar o distanciamento do pensamento humano e intelig\u00eancia (defini\u00e7\u00f5es 1 e 2), para a execu\u00e7\u00e3o de atividades (defini\u00e7\u00e3o 3) e posteriormente para o projeto de agentes inteligentes (defini\u00e7\u00f5es 4 e 5). Essa mudan\u00e7a adveio, dentre outros fatores, as limita\u00e7\u00f5es t\u00e9cnicas – tanto do entendimento do pensamento humano, quanto da capacidade de modelagem de tal processo. Este redirecionamento das pesquisas em IA nos leva para um questionamento importante, a \u201cIA forte\u201d realmente existe?<\/p>\n

    3 A \u201cIA forte\u201d existe?<\/h2>\n

    A influ\u00eancia do pensamento do pr\u00f3prio Alan Turing, considerado o pai da IA, de Hebert Simon e outros, consolidou o conceito de uma \u201cIntelig\u00eancia Artificial Geral\u201d (IAG). De fato, a IAG foi o objetivo basilar dos prim\u00f3rdios da IA, onde acreditava-se que a intelig\u00eancia de uma m\u00e1quina poderia executar com sucesso qualquer tarefa intelectual que um ser humano pode, tamb\u00e9m chamada de \u201cIA Forte\u201d ou \u201cIA Completa\u201d [Baum, 2017]. Tamb\u00e9m \u00e9 poss\u00edvel definir a IAG como o campo de pesquisa que estuda m\u00e1quinas capazes de executar uma a\u00e7\u00e3o (ou decis\u00e3o) superior ao intelecto humano [Gill, 2016].<\/p>\n

    Para entender o conceito de \u201cIA Forte\u201d, precisamos do conceito de Teste de Turing. Em sua mais recente obra, Stuart Russel afirma:<\/p>\n

    \u201c(…) ele (Turing) prop\u00f4s um teste operacional para intelig\u00eancia, chamado de jogo da imita\u00e7\u00e3o, que mais tarde (numa forma simplificada ficaria conhecido como teste de Turing. O teste avalia o comportamento da m\u00e1quina – especificamente, sua capacidade de enganar um interrogador humano e lev\u00e1-lo a acreditar que ela \u00e9 humana.\u201d<\/em> [Russell, 2019]<\/p><\/blockquote>\n

    O mais importante, a m\u00e1quina estaria dotada de consci\u00eancia, ou seja, ela precisaria estar ciente de seus pr\u00f3prios estados mentais e suas a\u00e7\u00f5es [Russell and Norvig, 2002]. Em [Russell, 2019], o autor complementa:<\/p>\n

    \u201cTuring esperava direcionar a discuss\u00e3o para a quest\u00e3o de saber se uma m\u00e1quina poderia se comportar de determinada maneira; e, em caso positivo – se fosse capaz, por exemplo, de discursar razoavelmente sobre os sonetos de Shakespeare e seu significado -, o ceticismo sobre a IA se tornaria insustent\u00e1vel. (…) Na verdade, Turing escreveu \u2019N\u00e3o poderiam as m\u00e1quinas executar coisas descritas como pensamento, mas muito diferente do que um ser humano faz?\u2019. Outro motivo para n\u00e3o ver o teste como uma defini\u00e7\u00e3o de IA \u00e9 que \u00e9 terr\u00edvel trabalhar com essa defini\u00e7\u00e3o, e \u00e9 por isso que os mais importantes pesquisadores de IA quase n\u00e3o se esfor\u00e7am para passar no teste de Turing.\u201d<\/em><\/p><\/blockquote>\n

    Avaliando a fronteira em IA, percebe-se que os esfor\u00e7os mais pr\u00f3ximos de uma \u201cconsci\u00eancia\u201d est\u00e3o em um campo chamado \u201cExplainable Artificial Intelligence\u201d<\/em> (XAI) ou em conceitos correlatos como IA interpret\u00e1vel ou IA respons\u00e1vel [Adadi and Berrada, 2018]. Tal campo de pesquisa surgiu a partir de press\u00f5es sociais e, consequentemente, de ag\u00eancias regulat\u00f3rias, de que o sistema baseado em IA fornecesse n\u00e3o somente a decis\u00e3o mais prov\u00e1vel (predi\u00e7\u00e3o) quanto tamb\u00e9m uma explica\u00e7\u00e3o – quais motivos o levaram a tomar tal decis\u00e3o.<\/p>\n

    O livro Weapons of math destruction: how big data increases inequality and threatens democracy<\/em> apresenta um bom resumo dos motivos pelos quais a XAI \u00e9 t\u00e3o necess\u00e1ria, dentre os quais, destaco a escalabilidade, o vi\u00e9s inerente aos dados rotulados com decis\u00f5es humanas pr\u00e9vias (j\u00e1 enviesados) e o potencial impacto catastr\u00f3fico de tais sistemas [O\u2019neil, 2016]. O document\u00e1rio Coded Bias (2)<\/em>, dispon\u00edvel na plataforma de streamingNetflix tamb\u00e9m \u00e9 um material rico de informa\u00e7\u00f5es sobre este tema. Encerro esta se\u00e7\u00e3o com a pondera\u00e7\u00e3o feita por [Russell, 2019]:<\/p>\n

    \u201cO teste de Turing n\u00e3o tem utilidade para a IA porque \u00e9 uma defini\u00e7\u00e3o simples e altamente condicional: depende das caracter\u00edsticas imensamente complicadas e basicamente desconhecidas da mente humana, que nascem tanto da biologia como da cultura.\u201d<\/em><\/p><\/blockquote>\n

    4 O processo de constru\u00e7\u00e3o de um modelo baseado em IA<\/h2>\n

    Se o Teste de Turing<\/strong><\/a> n\u00e3o \u00e9 o objetivo dos pesquisadores de IA, o que move este campo? Para entender, retomo o Design Science Research<\/em><\/strong><\/a> e o processo de KDD, descritos por [Hevner and Chatterjee, 2010] e [Fayyad et al., 1996] respectivamente. O DSR \u00e9 um processo de seis etapas encadeadas. As fases s\u00e3o: i) identifica\u00e7\u00e3o do problema e motiva\u00e7\u00e3o; ii) defini\u00e7\u00e3o dos objetivos da solu\u00e7\u00e3o; iii) Projeto e desenvolvimento da solu\u00e7\u00e3o (etapa de design<\/em>); iv) demonstra\u00e7\u00e3o que o artefato resolve uma ou mais inst\u00e2ncias do problema; v) avalia\u00e7\u00e3o da efici\u00eancia do artefato; vi) comunica\u00e7\u00e3o dos achados. Importante notar que o in\u00edcio do processo pode ocorrer em uma das quatro etapas iniciais, n\u00e3o tendo que iniciar obrigatoriamente da primeira. O desenho esquem\u00e1tico do DSR pode ser visto na Figura 1.<\/p>\n

    \"\"<\/p>\n

    Figura 1: Etapas da metodologia DSR. Fonte: Adaptado de [Hevner and Chatterjee, 2010]<\/p>\n

    \"\"<\/p>\n

    Figura 2: Etapas do KDD. Fonte: Extra\u00eddo de [Lira et al., 2016]<\/p>\n

    O interessante do DSR \u00e9 que ele permite a constru\u00e7\u00e3o de conhecimento antes, durante e ap\u00f3s a constru\u00e7\u00e3o do artefato, al\u00e9m de deixar claro os objetivos (utilidade) e desempenho (avalia\u00e7\u00e3o) dos constructos. Por isso esta metodologia \u00e9 t\u00e3o utilizada em sistemas de informa\u00e7\u00e3o que visam a inova\u00e7\u00e3o tecnol\u00f3gica[Gregor and Hevner, 2013].<\/p>\n

    \u00c9 poss\u00edvel notar uma clara similaridade entre o DSR e o processo de KDD, cujas etapas encontram-se descritas na Figura 2. Enquanto o KDD \u00e9 mais centrado nos dados, desde a sele\u00e7\u00e3o das bases at\u00e9 o uso do seu conhecimento – geralmente incorporado em um sistema de suporte \u00e0 decis\u00e3o (e.g.: an\u00e1lise de cr\u00e9dito banc\u00e1rio [Addo et al., 2018]; predi\u00e7\u00e3o de suic\u00eddio baseado em dados de m\u00eddias sociais [Roy et al., 2020] etc).<\/p>\n

    Assim como os exemplos mencionados na Introdu\u00e7\u00e3o, o agente inteligente \u00e9 projetado para um objetivo. \u00c9 uma vis\u00e3o utilitarista e que guia o processo de avalia\u00e7\u00e3o do pr\u00f3prio modelo. Tendo como exemplo a an\u00e1lise de cr\u00e9dito banc\u00e1rio, a medida de desempenho adotada pode ser a taxa de perdas nos empr\u00e9stimos concedidos, ou ainda, no exemplo da predi\u00e7\u00e3o de suic\u00eddio, a taxa de acertos pelo n\u00famero total de exemplos, medida chamada de acur\u00e1cia. A defini\u00e7\u00e3o das medidas de desempenho tem impacto crucial na utilidade do modelo-padr\u00e3o, tal como evidenciado no supramencionado document\u00e1rio Coded Bias.<\/em><\/p>\n

    Um processo padr\u00e3o que v\u00eam sendo aceito pela comunidade de IA \u00e9 o CRoss Industry Standard Process for Data Mining<\/em> (CRISP-DM)<\/strong><\/a>. A descri\u00e7\u00e3o completa do processo pode ser encontrada em [Wirth and Hipp, 2000]. Este processo pode ser entendido como uma evolu\u00e7\u00e3o do KDD. A primeira etapa do CRISP-DM consiste no entendimento do dom\u00ednio de aplica\u00e7\u00e3o<\/strong> (semelhante as duas primeiras etapas do DSR), as duas etapas subsequentes referem-se ao entendimento<\/strong> e a prepara\u00e7\u00e3o dos dados<\/strong>. As tr\u00eas \u00faltimas etapas s\u00e3o de constru\u00e7\u00e3o do modelo<\/strong>, o que envolve escolha de algoritmos, parametriza\u00e7\u00e3o e treinamento; avalia\u00e7\u00e3o<\/strong> do modelo considerando o dom\u00ednio de aplica\u00e7\u00e3o; e o deployment<\/strong><\/em>, que pode ser entendido como o pleno uso do modelo.<\/p>\n

    A literatura de IA apresenta uma vasta gama de exemplos do uso destes processos em diversos dom\u00ednios de aplica\u00e7\u00e3o. A apresenta\u00e7\u00e3o dos tr\u00eas processos teve um intuito de evidenciar o papel humano na qualidade dos modelos, sobretudo quanto ao entendimento e prepara\u00e7\u00e3o dos dados. Estima-se que cerca de 80% de todo o tempo do processo seja dedicado ao entendimento e prepara\u00e7\u00e3o dos dados (3).<\/p>\n

    A aprendizagem profunda ganhou notoriedade por justamente alimentar os algoritmos com os dados brutos, dispensando ou minimizando o tempo gasto na prepara\u00e7\u00e3o dos dados, reduzindo a interven\u00e7\u00e3o humana no processo – cabe ao modelo aprender a representa\u00e7\u00e3o adequada dos dados [LeCun et al., 2015]. Destaco ainda o surgimento de uma \u00e1rea chamada automated machine learning<\/em>, mais conhecida pelo acr\u00f4nimo automl<\/em> [He et al., 2021].<\/p>\n

    De toda a sorte, os avan\u00e7os na \u00e1rea n\u00e3o apontam na dire\u00e7\u00e3o de aus\u00eancia de interven\u00e7\u00e3o humana. Apesar do caso not\u00f3rio do AlphaZero, que por meio do paradigma de aprendizagem por refor\u00e7o foi capaz de criar seus pr\u00f3prios dados de partidas e refinar o modelo [Silver et al., 2018], a aplica\u00e7\u00e3o em mundo real de tal abordagem ainda parece incipiente – dado a natureza do ambiente dos agentes inteligentes – que n\u00e3o possui regras est\u00e1ticas e ambiente controlado tal como um tabuleiro de xadrez ou de go.<\/p>\n

    Em resumo, a vasta maioria das aplica\u00e7\u00f5es envolvendo IA ainda \u00e9 humano-dependente em todo o seu processo, sobretudo na defini\u00e7\u00e3o das medidas de desempenho e na valida\u00e7\u00e3o dos constructos – incluindo os projetos envolvendo a cria\u00e7\u00e3o de artefatos pass\u00edveis de prote\u00e7\u00e3o por direitos autorais como imagens digitais, m\u00fasica, poemas etc<\/em>. Portanto, quais aspectos est\u00e3o relacionados \u00e0 cria\u00e7\u00e3o de uma obra por um sistema baseado em IA? Tento responder este questionamento, relacionando alguns aspectos pertinentes a cria\u00e7\u00e3o de artefatos a partir de sistemas baseados em IA com o direito autoral, ressalto, a partir de uma vis\u00e3o tecnicista.<\/p>\n

    5 Considera\u00e7\u00f5es finais<\/h2>\n

    Ao longo deste ensaio busquei lan\u00e7ar luz ao conceito de intelig\u00eancia artificial que representasse tanto o estado da arte quanto o estado da pr\u00e1tica. Evidenciei que operacionaliza\u00e7\u00e3o de uma IA consciente e senciente ainda est\u00e1 restrita ao universo ficcional, e que o processo de cria\u00e7\u00e3o de modelos-padr\u00e3o – isto \u00e9, que atendam \u00e0 um prop\u00f3sito espec\u00edfico (e.g.: cria\u00e7\u00e3o de v\u00eddeos real\u00edsticos como deepfake<\/em> ou gera\u00e7\u00e3o de imagens estilizadas como DeepArt<\/em>) dependem da mobiliza\u00e7\u00e3o de uma grande quantidade de especialistas, como analistas de banco de dados, estat\u00edsticos, programadores, analistas de desempenho etc. Na subse\u00e7\u00e3o a seguir apresento os principais aspectos correlatos e levanto alguns questionamentos relacionado a prote\u00e7\u00e3o por direito autoral. Em seguida, tra\u00e7o um paralelo com outras aplica\u00e7\u00f5es que s\u00e3o tuteladas por direito autoral, encerrando com um posicionamento sobre a IA enquanto autora.<\/p>\n

    Aspectos relacionados \u00e0 sistemas baseados em IA<\/h3>\n
      \n
    • Componente humano:<\/strong> como visto, o componente humano \u00e9 de extrema import\u00e2ncia para o sucesso de um projeto de IA. \u00c9 dele que vem a compreens\u00e3o do dom\u00ednio de aplica\u00e7\u00e3o que permitir\u00e1 definir a(s) medida(s) de desempenho do agente inteligente, al\u00e9m da escolha do(s) algoritmo(s) e suas parametriza\u00e7\u00f5es. Negligenciar o papel do especialista humano, tanto que a pol\u00edtica nacional de intelig\u00eancia artificial do Chile (4), lan\u00e7ada em 2021, coloca o desenvolvimento de talentos como o primeiro eixo dos fatores habilitantes de tal a\u00e7\u00e3o. Cabe lembrar que a IA n\u00e3o criaria uma obra por livre e espont\u00e2nea vontade, ele \u00e9 um sistema reativo, ou seja, precisa de um input humano para que isso ocorra. Ent\u00e3o, questiono, como podem os desenvolvedores e analistas serem deixados de lado do direito autoral advindo de uma obra produzida por IA?<\/li>\n
    • Plataforma de desenvolvimento (software)<\/em><\/strong>: uso aqui o termo plataforma ao inv\u00e9s de ambiente, pois este termo \u00e9 mais amplo, abarcando n\u00e3o somente as ferramentas utilizadas para desenvolver a aplica\u00e7\u00e3o como as Integrated Development Environment (IDE), mas tamb\u00e9m os frameworks que encapsulam os algoritmos de IA. Exemplos de frameworks utilizados para aprendizagem profunda incluem Keras (5) e Tensorflow (6), por exemplo. Tais plataformas podem ser protegidas por direito autoral, por meio do registro de programa de computador). Em alguns pa\u00edses, a prote\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m pode se dar por meio de patente de software. Nota-se que algumas das ferramentas s\u00e3o open-source. O que abre o questionamento, como fica a rela\u00e7\u00e3o do licenciamento destas ferramentas e o esquema de prote\u00e7\u00e3o de obras constru\u00eddas a partir delas?<\/li>\n
    • Infraestrutura computacional (hardware)<\/em>:<\/strong> os m\u00e9todos\/algoritmos de IA que permitem a gera\u00e7\u00e3o de obras pass\u00edveis de prote\u00e7\u00e3o por direitos autorais como m\u00fasicas, desenhos e textos, requerem alto poder de processamento. Dentre tais m\u00e9todos, destaco as Generative Adversarial Networks<\/em> (GANs) [Creswell et al., 2018] e a Long Short-Term Memory<\/em> (LSTM) [Mao et al., 2018]. Apesar do barateamento do custo do hardware, acelera\u00e7\u00e3o por meio de General-Purpose computing on Graphics Processing Units<\/em> (GPGPUS) e at\u00e9 mesmo uso de infraestrutura sob demanda como o Google Colab (7), permitindo que desenvolvedores independentes consigam rodar seus c\u00f3digos a baixo custo, usualmente existem empresas\/companias\/universidades que subsidiam times de desenvolvimento e prov\u00eam a infraestrutura necess\u00e1ria. Dessa forma, pondera-se que a prote\u00e7\u00e3o do tipo work for hire<\/em> tamb\u00e9m seja ventilada em tais casos;<\/li>\n
    • Dados:<\/strong> algoritmos baseados em aprendizagem profunda s\u00e3o conhecidos por requererem uma quantidade massiva de dados a fim de dispensar o processo de prepara\u00e7\u00e3o destes. Ora, as bases de dados podem ser protegidas por direito autoral, o que levanta um questionamento, como fica o direito autoral das obras que foram baseadas em uma base de dados protegida?<\/li>\n<\/ul>\n

      Paralelos com outras formas de prote\u00e7\u00e3o e implica\u00e7\u00f5es<\/h3>\n

      Alguns dos questionamentos levantados na subse\u00e7\u00e3o anterior j\u00e1 norteiam algumas possibilidades para tutelar as obras produzidas por um sistema baseado em IA. Importante destacar que j\u00e1 existem artefatos criados parcialmente por sistemas baseados em IA e que s\u00e3o tutelados pelo direito autoral, como por exemplo, a topologia de circuitos integrados, protegido pela modalidade de propriedade intelectual Sui generis de acordo com a Lei 11.484, de 31 de Maio de 2007. Digo que a topologia de circuitos integrados \u00e9 criada parcialmente pois a IA n\u00e3o \u00e9 capaz de cri\u00e1-la sem o input, supervis\u00e3o e valida\u00e7\u00e3o de especialistas humanos.<\/p>\n

      Outro paralelo que pode ser feito \u00e9 com a produ\u00e7\u00e3o audiovisual, considerando os in\u00fameros atores necess\u00e1rios para a constru\u00e7\u00e3o de um sistema baseado em IA, conforme apresentado na Se\u00e7\u00e3o anterior. O Prof. Dr. Marcos Wachowicz apresenta no canal do Instituto Observat\u00f3rio do Direito Autoral no YouTube um bom contexto sobre a aplicabilidade do direito autoral \u00e0 produ\u00e7\u00e3o audiovisual (8).<\/p>\n

      Argumento contra a atribui\u00e7\u00e3o de autoria plena ao agente dotado de IA perguntando: Caberia uma penalidade a IA em caso de infra\u00e7\u00e3o, como pl\u00e1gio? Isso \u00e9 impens\u00e1vel. Deslig\u00e1-la n\u00e3o garantiria que uma c\u00f3pia do modelo fosse utilizada em outro computador. Comparo a IA a um c\u00e3o, quando este ataca um ser humano – a legisla\u00e7\u00e3o prev\u00ea que o dono do animal possa ser penalizado pela atitude do c\u00e3o. Por analogia, a puni\u00e7\u00e3o caberia aos construtores do agente inteligente (conjunto de pessoas ou corpora\u00e7\u00f5es) – isso teria um efeito regulat\u00f3rio mais eficaz que o \u201cdesligamento da m\u00e1quina\u201d.<\/p>\n

      Encerro este ensaio enaltecendo a necessidade de mais discuss\u00f5es sobre este tema t\u00e3o atual e relevante economicamente, tanto que a comunidade cient\u00edfica j\u00e1 iniciou estudos sobre aspectos est\u00e9ticos e percep\u00e7\u00f5es p\u00fablicas acerca de cria\u00e7\u00f5es art\u00edsticas puramente humanas e mediadas por intelig\u00eancia artificial [Hong and Curran, 2019]. Ressalto ainda que a regula\u00e7\u00e3o precisa considerar os aspectos t\u00e9cnicos, e ainda, que reflitam os interesses sociais e econ\u00f4micos, a fim de assegurar os investimentos na \u00e1rea por meio da explora\u00e7\u00e3o da propriedade intelectual.<\/p>\n

      Agradecimentos<\/h3>\n

      Este trabalho foi parcialmente financiado pelo ConselhoNacional de Desenvolvimento Cient\u00edfico e Tecnol\u00f3gico (CNPq) – DT-308334\/2020-5.<\/p>\n

      Notes<\/h3>\n

      1Original: \u201cAll fields that create designs to perform tasks or fulfill goals and functions.\u201d<\/em>
      \n2https:\/\/www.netflix.com\/br\/title\/81328723 acessado em 30 de janeiro de 2022.<\/em>
      \n3https:\/\/www.forbes.com\/sites\/gilpress\/2016\/03\/23\/data-preparation-most-time-consuming-least-enjoyable-datascience-task-survey-says\/?sh=73b421726f63 acessado em 31 de janeiro de 2022.<\/em>
      \n4https:\/\/minciencia.gob.cl\/areas-de-trabajo\/inteligencia-artificial\/politica-nacional-de-inteligencia-artificial\/ acessado em 21 de dezembro de 2021.<\/em>
      \n5https:\/\/keras.io\/ acessado em 31 de janeiro de 2022<\/em>
      \n6https:\/\/www.tensorflow.org\/ acessado em 31 de janeiro de 2022<\/em>
      \n7https:\/\/research.google.com\/colaboratory\/intl\/pt-BR\/faq.html acessado em 31 de janeiro de 2022<\/em>
      \n8https:\/\/youtu.be\/b0lWzkfVmu4 acessado em 31 de janeiro de 2022.<\/em><\/p>\n

      Refer\u00eancias<\/h3>\n

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      O estudo de F\u00e1bio Manoel Fran\u00e7a Lobato, vinculado \u00e0 Universidade Federal do Oeste do Par\u00e1, aborda as implica\u00e7\u00f5es da Intelig\u00eancia Artificial (IA) no contexto do Direito Autoral. Com exemplos pr\u00e1ticos e uma an\u00e1lise detalhada das bases tecnol\u00f3gicas e jur\u00eddicas, o autor questiona como as cria\u00e7\u00f5es feitas por sistemas de IA podem ser protegidas por direitos […]<\/p>\n","protected":false},"author":34,"featured_media":2974,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_acf_changed":false,"footnotes":""},"categories":[56],"tags":[706,771,563,28,15,159,335,775,177,772,523,161,22,18,773,708,21,739,615,774],"class_list":["post-2962","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-artigos","tag-algoritmos","tag-aprendizagem-profunda","tag-bases-de-dados","tag-curso-direito-autoral","tag-direito-autoral","tag-direitos-autorais","tag-direitos-de-autor","tag-direitos-sui-generis","tag-fabio-manoel-franca-lobato","tag-infraestrutura-computacional","tag-inovacao-tecnologica","tag-instituto-observatorio-do-direito-autoral","tag-inteligencia-artificial","tag-ioda","tag-modelos-padrao","tag-obra-criativa","tag-propriedade-intelectual","tag-protecao-juridica","tag-regulacao","tag-sistemas-inteligentes"],"acf":[],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/posts\/2962","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/users\/34"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/comments?post=2962"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/posts\/2962\/revisions"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/media\/2974"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/media?parent=2962"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/categories?post=2962"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/data.ioda.org.br\/json\/wp\/v2\/tags?post=2962"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}